Florestas autóctones portuguesas: serão um recurso chave na prevenção de incêndios florestais?

Estudos recentes confirmam que a floresta autóctone, apesar de não ser imune ao fogo, revela maior resiliência, combustibilidade reduzida e potencial para mitigar incêndios em Portugal, especialmente quando gerida de forma ativa e cientificamente fundamentada.

Com o aumento das temperaturas em Portugal continua a ser apanágio a abertura dos telejornais refletir a situação de incêndios em Portugal que, ano após ano, apresenta uma das mais elevadas incidências de incêndios florestais da Europa, resultado de uma interação complexa entre condições climáticas mediterrânicas, ocupação do solo desordenada e abandono da gestão florestal. Segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), entre 2001 e 2022, mais de três milhões de hectares de vegetação arderam em Portugal, com incidência significativa sobre povoamentos compostos por espécies autóctones. Contudo, análises recentes demonstram que estas espécies apresentam comportamentos distintos face ao fogo, quando comparadas com espécies exóticas de crescimento rápido, como o eucalipto.

Estudos realizados pelo Centro de Estudos Florestais da Universidade de Évora documentaram que carvalhais marcescentes no Sul de Portugal mostraram resistência significativa ao fogo, com estruturas de Quercus canariensis e Quercus faginea a regenerarem naturalmente após grandes incêndios. Os autores sublinham que “os ecossistemas autóctones, mesmo afetados, mantêm a funcionalidade ecológica e a biodiversidade, desde que a densidade de combustível não seja excessiva”.

As estatísticas do ICNF indicam que, entre 1 de janeiro e 15 de outubro de 2024, ocorreram 6 229 incêndios rurais, resultando em 136 424 hectares de área ardida. Embora se tenha verificado uma redução de 47% no número de ocorrências em relação à média da década anterior, a área ardida aumentou 22%, evidenciando que a severidade dos incêndios persiste. Segundo o Observatório das Florestas, esta tendência é agravada pela existência de extensos povoamentos homogéneos, em particular de eucalipto (Eucalyptus globulus), cuja biomassa rica em óleos voláteis acelera a propagação do fogo.

A combustibilidade reduzida das espécies autóctones tem sido documentada por diversos estudos comparativos. Num artigo intitulado “Propriedades térmicas de espécies florestais”, publicado na revista Quercetea, quantificaram a energia libertada durante a ignição de folhas secas de diferentes espécies e verificaram que o eucalipto liberta, em média, 38% mais calor do que o sobreiro ou a azinheira. Além disso, o eucalipto produz faíscas e fragmentos incandescentes que podem ser transportados pelo vento a distâncias superiores a 2 km, aumentando o risco de ignição secundária.

A floresta autóctone portuguesa é constituída essencialmente por sobreiros (Quercus suber), azinheiras (Quercus rotundifolia), carvalhos-portugueses (Quercus faginea), castanheiros (Castanea sativa) e pinheiros-mansos (Pinus pinea). Estas espécies são adaptadas aos solos ácidos e às condições de seca prolongada, apresentando características morfofisiológicas que favorecem a resistência ao fogo, nomeadamente cascas espessas, estruturas radiculares profundas e elevada capacidade de rebentação após queimadas.

De acordo com o 6.º Inventário Florestal Nacional, e os dados relativos aos incêndios publicados pelo ICNF, em termos proporcionais, a floresta de eucalipto representa 26% da floresta portuguesa, mas foi responsável por cerca de 37% da área ardida entre 2001 e 2022. Por contraste, os sobreirais, que ocupam aproximadamente 23% da área florestal, registaram apenas 4,7% da área ardida no mesmo período. Tais dados sustentam a hipótese de que a floresta autóctone, apesar de não ser imune ao fogo, é menos propensa à propagação do mesmo.

É consensual entre especialistas que a gestão florestal é o principal determinante da resiliência ao fogo, mais do que a escolha da espécie isoladamente. Práticas como desbastes regulares, remoção de mato, abertura de aceiros e silvicultura preventiva são fundamentais para reduzir a carga de combustível e aumentar a compartimentação do mosaico florestal. Em florestas geridas, o fogo tende a ser menos intenso e mais controlável.

A Lei do Restauro da Natureza, em discussão desde 2023, propõe metas de renaturalização e conversão de povoamentos exóticos para espécies nativas, visando não apenas a prevenção de incêndios mas também a recuperação da biodiversidade e dos serviços ecossistémicos. A experiência do Vale do Ermeiro (Trás-os-Montes), onde uma comunidade rural substituiu eucaliptais por nogueiras, amendoeiras e carvalhos, mostra que é possível criar paisagens resilientes com base em espécies autóctones.

O ICNF defende que, para além da prevenção de incêndios, as florestas autóctones oferecem vários co-benefícios: retêm água no solo, previnem a erosão, sequestram carbono e albergam uma elevada diversidade biológica. São ainda fonte de produtos florestais não lenhosos (como a cortiça e os frutos silvestres) e de valor turístico e paisagístico significativo.

Em conclusão, embora a floresta autóctone não represente uma solução absoluta contra os incêndios, os dados empíricos e estudos científicos confirmam que estas formações vegetais apresentam menor inflamabilidade, maior resiliência pós-incêndio e contributos importantes para a criação de paisagens florestais mais seguras e sustentáveis. A sua expansão e gestão integrada, combinadas com medidas de ordenamento do território, devem ser prioritárias nas estratégias nacionais de adaptação às alterações climáticas e à prevenção de catástrofes naturais.

Webgrafia e Bibliografia

  • Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). (2022, 2023, 2024). Relatórios do Inventário Florestal Nacional. icnf.pt
  • pt. (2023). “Gestão de combustível e risco de incêndios.” www.florestas.pt
  • Espaço Visual. (2024). “Valorização da floresta autóctone.” espaco-visual.pt
  • Pereira, R. et al. (2021). “Resiliência dos carvalhais autóctones a incêndios.” Dspace Universidade de Évora.uevora.pt
  • Camargo, J. (2021). “Incêndios e espécies florestais: míos e evidências.” Jornal Económico.jornaleconomico.sapo.pt
  • Silva, A. et al. (2019). “Propriedades térmicas de espécies florestais.” Quercetea, 21(2), 95–113.
  • Observatório das Florestas. (2023). “Incêndios em Portugal: dados e tendências.” observatoriodasflorestas.pt
  • Público. (2023). “Lei do Restauro da Natureza em Portugal.” publico.pt