No passado dia 3 de março assinalou-se o Dia Internacional da Vida Selvagem, cuja perda acelerada ocorre em todo o planeta. Portugal não é exceção, sendo o quarto país europeu com mais espécies em risco de extinção, segundo a atualização de 2019 da Lista Vermelha da IUCN.(1) Segundo a Agência Europeia do Ambiente, as causas da destruição de biodiversidade são complexas e diversificadas. A degradação de ecossistemas e habitats causada pelos efeitos da crise climática, da monocultura agrícola e florestal intensiva, e da proliferação de espécies exóticas invasoras que tem provocado sérios danos na distribuição e abundância de inúmeras espécies de mamíferos, répteis, anfíbios, aves, plantas, entre muitos outros grupos de seres vivos. Aliada à destruição de biodiversidade está também a intensa exploração dos recursos vivos, no qual se incluem os recursos cinegéticos.(2)
Consultando o calendário para a época venatória 2020-2021, disponibilizado pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) , tomamos conhecimento sobre as espécies cinegéticas, os períodos em que pode ocorrer a caça, assim como o número de animais que podem ser abatidos por caçador.
A primeira das espécies cinegética que consta na lista é a rola-comum, que vem experimentando uma tendência regressiva nos últimos 10 a 15 anos, de acordo com o relatório “Estado das Aves em Portugal 2019”, publicado pela Sociedade Portuguesa para o estudo das Aves (SPEA) (4), encontrando-se classificada pela IUCN como “Vulnerável”.(5)
A segunda espécie classificada pela IUCN como “Vulneravel” (7), e que consta na lista das espécies cinegéticas, é o zarro. Trata-se de uma espécie migratória que depende da proteção e manutenção de habitats de zonas húmidas. Pode ser encontrado em Portugal sobretudo enquanto invernante, onde podem chegar em bandos de pequenas centenas, ocupando pauis, lagoas, açudes e albufeiras interiores. O paúl do Boquilobo, albufeiras do Alentejo e lagoas costeiras no Algarve são dos locais mais importantes para a espécie a nível nacional, onde chega a reproduzir-se, encontrando-se em declínio acentuado (6).
Mas a lista não se esgota no grupo das aves, afetando também o dos mamíferos. O coelho-bravo é uma espécie que tem sofrido um decréscimo progressivo de densidade. A população de coelhos tem vindo a ser pressionada pela mixomatose, uma doença infectocontagiosa causada pelo vírus Myxoma, altamente transmissível e que provoca a morte dos animais.(8)
O coelho-bravo encontra-se classificado como “Em perigo”, segundo dados da IUCN,(9) e a sua caça intensa contribuí para o declínio da população(10). Este declínio tem sérias implicações nas cadeias alimentares, visto ser a principal fonte de alimento para diversas espécies, também com estatuto de conservação, tais como a águia imperial (Aquila adalberti), classificada como “Vulnerável”,(11) e o lince ibérico (Lynx pardinus), classificado como “Em perigo”.(12) Já em 2016, um artigo publicado na Nature afirmava que quando as populações de coelho diminuem, segue-se uma queda no número de fêmeas reprodutoras de lince e de crias de águia-imperial afetando a capacidade de se reproduzirem naturalmente (13). Atualmente e segundo o livro vermelho dos mamíferos de Portugal Continental, esta espécie apresenta quebras anuais na sua população de 20%(14).
O impacto da caça não se esgota no número de indivíduos das populações das referidas espécies. O chumbo é usado há décadas em munições de caça e pesca e tem “terríveis impactos” nas pessoas, na vida selvagem e na natureza. Nos cartuchos usados por muitos caçadores, inúmeras pequenas esferas de chumbo são disparadas em lugar de uma única bala. Como resultado, apenas uma pequena proporção do chumbo disparado atinge o alvo. As restantes esferas de chumbo ficam dispersas na natureza, sendo ingeridas por aves aquáticas que as confundem com pequenas pedras, que engolem para ajudar à digestão, e com as sementes que comem (15).
No sentido de minimizar o impacto da caça sobre as espécies mencionadas e sobre os ecossistemas no seu todo, o Calendário Venatório para a época 2018-2021, já proíbe a utilização de cartuchos carregados com granalha de chumbo, na caça em zonas húmidas, incluídas em áreas classificadas segundo a Portaria 105/2018, 2018-04-18 – DRE, (16) e em 2019 sofreu uma atualização, restringindo para quatro dias a caça à rola-comum, de acordo com a Portaria 133/2020, 2020-05-28 – DRE (17). Apesar destas alterações, a legislação não faz referência às outras espécies com estatuto de conservação pela IUCN e deixa de fora todas as zonas húmidas não classificadas.
A caça é uma das atividades mais antigas da História da Humanidade, tendo sido decisiva na evolução do Homem, nomeadamente na obtenção de alimento e vestuário, no desenvolvimento da motricidade, engenho da espécie humana (pela necessidade de conceção de ferramentas para caçar) e no desenvolvimento da comunicação, dada a necessidade de planear essa atividade dentro das comunidades. No entanto, a finalidade primordial da caça foi-se transformando ao longo do tempo, sendo que nos dias de hoje dinamiza o mundo rural atenuando desigualdades sociais e territoriais e suportando emprego(18).
Em Portugal, a caça encontra-se regulamentada pela Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro (Lei de Bases Gerais da Caça),(19) e pelo decreto que a regulamenta, o Decreto-Lei nº 202/2004, de 18 de Agosto, estando definidas as épocas de caça e quais as espécies protegidas (de captura interdita), de forma a garantir uma exploração sustentável dos recursos cinegéticos (20).
Tendo em vista essa sustentabilidade, o Conselho Nacional da Caça reuniu-se com representantes do setor da caça, da agricultura e das associações de defesa do ambiente e da conservação da natureza, em janeiro de 2021, tendo sido consensual a necessidade de aprovar alterações à atual legislação. Dessa reunião, o governo defendeu a necessidade de realização de censos regulares das espécies selvagens (incluindo as cinegéticas mais significativas), da comunicação prévia das montarias, da regulamentação ou proibição dos cercões e da obrigatoriedade de todas as zonas de caça disporem de um responsável técnico que responda pela sua gestão. Decidiu o Conselho que os representantes dos vários setores deveriam chegar as suas propostas de alteração à legislação em vigor. Finda essa etapa, comprometeu-se o Ministério do Ambiente e da Ação Climática a apresentar propostas para alterar a regulamentação da Lei da Caça, ficando agendada uma nova reunião do Conselho para discutir a sustentabilidade e racionalidade na gestão dos recursos cinegéticos (21).
- IUCN Red List of Threatened Species
- https://www.eea.europa.eu/themes/biodiversity/state-of-nature-in-the-eu
- https://www.icnf.pt/api/file/doc/a859109f61186d34
- https://www.spea.pt/publicacoes/publicacao/relatorio-estado-das-aves-em-portugal-2019/
- https://www.iucnredlist.org/species/22690419/154373407
- https://www.wilder.pt/historias/aves-sete-especies-ameacadas-que-dependem-das-zonas-humidas/
- https://www.iucnredlist.org/species/22680358/155473754
- https://www.iucnredlist.org/species/41291/170619657#conservation-actions
- https://www.iucnredlist.org/species/41291/170619657
- http://naturlink.pt/article.aspx?menuid=2&cid=5505&bl=1
- https://www.iucnredlist.org/species/22696042/152593918
- https://www.iucnredlist.org/species/12520/174111773
- https://www.nature.com/articles/srep36072
- https://livrovermelhodosmamiferos.pt/mamiferos/lagomorpha/
- https://www.ambientemagazine.com/organizacoes-ambientais-felicitam-proibicao-de-municoes-com-chumbo-nas-zonas-humidas/
- https://dre.pt/home/-/dre/115132735/details/maximized
- https://dre.pt/home/-/dre/134676791/details/maximized
- http://especiescinegeticas.pt/areas-acao/caca
- https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-/search/558207/details/normalp_p_auth9OrZHYPJ
- https://dre.pt/pesquisa/-/search/480704/details/maximized
- Consenso generalizado no Conselho Nacional da Caça – XXII Governo – República Portuguesa (portugal.gov.pt)
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