Numa pequena aldeia localizada no sopé da Serra da Gardunha, construiu-se um humanista. Nascido em 1949 em Lisboa, todas as férias rumava à aldeia dos avós maternos. Aí, o menino “Toni”, ficou sensibilizado pelos pés descalços dos amigos com quem brincava e desde cedo se empenhou em ser ativo na comunidade.
António Guterres, o menino “Toni”, foi crescendo e fez-se Homem. Ao longo da sua vida, desempenhou vários cargos de relevância, desde ao nível da admistração local, enquanto Presidente da Assembleia Municipal do Fundão (1989-1995), até ao cargo de Primeiro-Ministro de Portugal (1995-2002).
Teve, e continua a ter, um papel de destaque na área social e na defesa dos direitos humanos. Foi presidente do Centro de Ação Social Universitária e implementou projetos de desenvolvimento social em bairros pobres da região de Lisboa(na década de 1970). Foi sócio-fundador do CPR – Conselho Português dos Refugiados (1991), Organização Não Governamental que, em 1993, se tornou parceiro operacional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). O CPR tinha, e tem, como missão a proteção jurídica dos refugiados e requerentes de asilo. Em 2005, foi eleito Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, cargo que ocupou até 2015. Aí, visitou vários campos de refugiados, e zonas em conflito, como o Darfur, e teve um papel de relevo na defesa dos Direitos Humanos.
A Casa das Memórias António Guterres integra a rede de Casas e Lugares do Sentir. Sedeada em Donas, abriu ao público a 2 de Janeiro de 2019 e tem como missão perpetuar as memórias e os ideais do homem humanista, filho da terra. Segundo Pedro Silveira, técnico da autarquia do Fundão, responsável pela rede de visitas educativas do concelho, na Casa das Memórias podem-se enontrar o Centro UNESCO, o Centro Documental António Guterres e a Escola da Cidadania. A Escola da Cidadania aborda temas como a Ecologia, Direitos Humanos e diálogo inter-religioso, e este projeto recebeu, em 2021, um prémio atribuído pelo Júri da 1ª Edição do Prémio Autárquico “Nunca Esquecer, Aristides de Sousa Mendes” e a 2ª Menção Honrosa, na categoria “Artes, Património e outros Domínios Culturais”.
Foto: De Donas para o mundo, com Portugal no horizonte, António Guterres torna-se uma bandeira para o país (fonte própria)
Esta Casa das Memórias reúne ainda um espólio de 60 peças, que António Guterres recebeu enquanto Primeiro-Ministro e Secretrário-Geral das Nações Unidas. Deste espólio fazem parte uma bandeira de Portugal oferecida, em 2000, por “Puto” – cidadão timorene que a enterrou durante mais de 25 anos, à espera do fim do domínio indonésio -, um Guerreiro Asteca, e um presépio em madrepérola oferecido por Yasser Arafat (1929-2004), líder da Autoridade Palestiniana e prémio Nobel da Paz (no ano de 1994, juntamente com Yitzhak Rabin e Shimon Peres).
A aldeia de Donas recebeu, em Setembro de 2018, um primeiro grupo de refugiados, que ficaram alojados no Seminário. Donas deu assim resposta a um apelo humanitário internacional e também a um pedido de António Guterres, para o acolhimento de 19 refugiados do Barco Aquarius. Esta resposta implicou um trabalho conjunto e coordenado por parte do Município e entidades diversas como a Presidência do Conselho de Ministros, o (na altura) Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, e o Alto Comissariado para as Migrações.
De acordo com dados do Plano Municipal para a integração de Migrantes da Câmara Municipal do Fundão, em Junho de 2021 existiam 30 refugiados e requerentes de asilos, oriundos da Nigéria, Sudão, Senegal e Eritreia. Os refugiados que são acolhidos na zona do Fundão, são integrados nas escolas locais e, no caso da população adulta, trabalham nos setores fabril, agrícola, construção civil, dentre outros.
Do ponto de vista desta população migrante, são vários os desafios que se lhe colocam, tais como a barreira linguística, a dificuldade no acesso à habitação, ou a obtenção de emprego não precário, e na sua área de formação. Podem também constituir desafios: a existência de esterótipos e preconceitos em relação à população migrante, o défice de informação sobre os seus direitos, bem como sobre o sistema eleitoral português – o que limita a sua participação na vida comunitária local.
Segundo notícia veiculada pelo Jornal de Notícias, na sua edição de 23 de novembro de 2020, “não há desemprego no maior centro para as migrações do país, instalado no antigo Seminário do Fundão”, entre os 43 cidadãos que fugiram do seu país, mergulhado num cenário de guerra.
Do lado da população portuguesa, residente no Fundão, será que existe o sentimento de injustiça face às condições oferecidas à população migrante, algum tipo de preconceito, incluindo preconceitos religiosos, ou o menor acesso de ofertas de emprego?
Até à data, não há evidência que aponte nesse sentido . Há, no entanto, referência ao facto de o Fundão ter recebido o Reconhecimento de Município do Ano em 2020, pelas suas boas práticas, incluindo a criação do seu Centro para as Migrações, no “apoio a refugiados, estudantes e trabalhadores migrantes (permanentes ou temporários)”.
De acordo com a SIC, há suspeitas, por parte do SEF, da existência de uma rede de exploração de imigrantes no Fundão, facto que, por si só, pode justificar uma atenção redobrada à proteção e acolhimento de refugiados e migrantes. Esta, parece ser uma exceção à regra: a zona do Fundão é um território de acolhimento.
Parafraseando António Guterres, “No final, resume-se a valores (…). Queremos que o mundo que as nossas crianças vão herdar seja definido pelos valores consagrados na Carta das Nações Unidas: Paz, Justiça, Respeito, Direitos Humanos, Tolerência e Solidariedade”,
E, quem visita a Casa das Memórias, pode ler, no painel inicial da exposição, as palavras de Eduardo Lourenço, que descrevem bem um homem como António Guterres, com um enorme espírito humanista, e constante abertura ao outro: “Quem vê o seu povo, vê o mundo todo.”